sábado, 26 de maio de 2007

Wladimir Herzog

Editorial do Estado de S.Paulo três dias após a morte do jornalista.


Os limites da tolerância

Estado de S.Paulo
28 de outubro de 1975

É pública e notória a intolerância que este jornal adquiriu face a tudo que desagregue o tecido social expresso na lei. Nosso apreço por esta sempre valeu mais pela consciência que ela significa e alimenta que pelas fórmulas sob que se apresenta. Tanto assim que soubemos romper com a própria legalidade e perfilar-nos com a excepcionalidade, quando a fórmula foi usada contra a consciência, inibindo-a, embotando-a ou mesmo pervertendo-a. O que não podemos jamais sacrificar foi nosso horizonte democrático de situação – o Direito.

Porque a experiência nos ensinou que não há arbitrariedade, por flagrante que seja, que não possa ser acoitada sob a capa de alguma legalidade. E este é o risco maior dos chamados instrumentos de exceção da Revolução de 1964, cuja extinção, desuso ou limitação lamentamos não conseguir ainda enxergar; pois quem se faz autor da lei, sem a cautela escrupulosa de aferi-la, na índole e no exercício, pelo Direito como um fim, escancara a estrada sem obstáculo do voluntarismo e da prepotência.

O imperativo de alimentar na opinião a consciência aguda do Direito e do respeito à pessoa humana tem freqüentemente incitado este jornal a repisar o assunto das prisões efetuadas pelos diversos organismos de segurança, sendo indiferente a profissão política dos elementos presos, quando as prisões mesmas surgem aluadas de desrespeito à consciência jurídica: escapam à vigilância, subtraem-se a qualquer julgamento, até que sejam completadas, na calada e na clandestinidade. As notas oficiais com que depois são divulgadas e os esgotamentos dos prazos de incomunicabilidade dos presos chegam tarde demais para sanar a violência feita à opinião na origem. Ela continua a ver na prisão um rapto ou um seqüestro, porque não há como aceitar, na defesa da lei e do Estado, o pacto com a infração e o desafio a um dos Poderes de Estado.

Assim, não é a condição de jornalista de Wladimir Herzog, diretor do Departamento de Jornalismo do Canal 2, TV-Cultura, que nos faz voltar ao assunto. É a condição do cidadão de que até sábado à tarde estava revestido o sr. Wladimir Herzog, com direito à tutela do Estado. Foi certamente confiante nessa proteção que, intimado a comparecer ao Departamento de Operações Internas (DOI) do II Exército, se comprometeu a fazê-lo sem necessidade de escolta policial, à hora prevista, conforme se pode concluir do próprio comunicado oficial divulgado pelo Comandante do II Exército.

Depois de seu fim trágico, a declaração, de “assinatura ilegível” e rasgada em pedaços, encontrada junto ao cadáver, e recomposta “para os devidos fins legais”, passou a ser peça do comunicado do II Exército, junto com outros dados do depoimento tomado a termo. Ela soa ali como uma pena póstuma de execração, uma damnatio memoriae de quem não esperou pelo direito de se defender e cujas atitudes, a juízo do órgão do II Exército, “não faziam supor o gesto extremo por ele tomado”.

A nota é mais um reflexo do clima que de há muito se instaurou – já desde dias do governo passado – e que marca bem os antecedentes do fim lamentável do sr. Wladimir Herzog. Não iremos especular sobre este último, já que não nos interessa levar lenha a uma fogueira que jamais ateamos.

Interessa-nos, sim, o dano à Nação pelo clima de inquietação, de medo, de delação sistemática, de exposição impiedosa da fama de cidadãos a quem não foi dada ainda a oportunidade de se defender perante os tribunais competentes; interessa-nos que a formação de culpa seja feita na Justiça e, quando for o caso, na Justiça Militar, evitando-se o prejulgamento que tende a dar por prescindível o processo. Interessa-nos saber a responsabilidade por esse clima de terrorismo; pois é de terrorismo que se trata quando se multiplicam as prisões sem mandado judicial, ou arrepio da lei, à margem da ordem e baldadas todas as possibilidades de habeas corpus.

Postulamos sempre investigações, vigilância na defesa das instituições democráticas e armas adequadas à preservação dos ideais de 1964. E, porque nestes comungamos desde sua origem, temos todo o direito e autoridade para reclamar que tais investigações se façam dentro de quadros jurídico-institucionais bem definidos e conhecidos de todos, para que não se desminta o que tanto nos custou preservar e salvar. Desgraçadamente não temos conhecido bastante eco; e temos que presenciar o desgaste, a decomposição, o descrédito – que notas oficiais não podem, por si sós, recuperar.

Resta-nos, entretanto, uma convicção: a de que um tal clima, pelos traços mesmo de desacato à ordem e à paz que envolve, é obra e benefício de forças que se opõem ao governo do presidente Ernesto Geisel. Há poucos dias, falando aos presidentes dos diretórios regionais da Arena e à Comissão Executiva Nacional, s.exa. mencionava a liberdade e a tranqüilidade de que todos se deviam sentir assegurados neste País, desde que não alinhados entre as forças que se opõem à ordem. Queremos acreditar que s.exa. não faz exceção de pessoas e que reserva aos infratores de dentro do aparelho estatal o mesmo tratamento exemplar de que ameaçou os que se acham fora, na oposição.

A existência confessa de “porões na administração”, com que há alguns meses se descartou um exame mais detido das primeiras arbitrariedades denunciadas e com que se evitou o comparecimento à Câmara do ministro da Justiça, tem seus limites. Eles são os limites mesmos da ordem hierárquica, que ora parecem impunemente ignorados; eles são o desconhecimento e o menoscabo das intenções do chefe do Executivo, tão solene e espontaneamente declaradas. Eles são, enfim, a propaganda negativa de uma administração e de um governo, que o trauma da morte de Wladimir Herzog, mesmo que se acredite ter sido infligida pelas próprias mãos, não pode deixar de definir.

Que haja porões em toda e qualquer administração – de corrupção, de desafio à ordem e de afrontamento à lei – é incontestável. Que esses porões se transformem num poder dentro do Poder não se justificará por temor algum. Eles são o maior desafio e a maior contestação à Revolução de 1964 – porque uma contestação que toma forma de confiança. Ou, antes, dos abusos da confiança. É essa uma contestação interna a mais insidiosa guerra psicológica que o governo pode conhecer. E que, com tanta maior razão, não poderá tolerar.

Um comentário:

Maria Carolina disse...

O editorial tem umas passagens bem interessantes- tanto pro bem, quanto pro mal. Achei ótimo quando é exigido que as coisas sejam feitas por cima do pano e quando caracteriza o clima da época como terrorismo. Mas me deu uma fisgada quando li ( desculpem) a "puxadinha de saco" do presidente Geisel e quando o golpe foi chamado de "Revolução".
Apesar disso, não dá pra negar, foi um ato extremamente corajoso publicar um editorial como esse, numa época em que as coisas estavam cada vez mais pesadas.