segunda-feira, 28 de maio de 2007

A RCTV, lá e cá

A mídia nativa elegeu Hugo Chávez como o perigo público número 1, secundado por Evo Morales. Hoje leio na Folha de S.Paulo farto material assinado por Fabiano Maissonave sobre o fim da concessão da RCTV, maior emissora de televisão da Venezuela, determinado pelo presidente Chávez. Informa o jornal que com o encerramento das atividades da RCTV, não haverá mais crítica pela tevê ao governo de Caracas. Permito-me observar que a palavra crítica soa como muito tolerante em relação à emissora e distante da verdade factual. Dentro da RCTV foi tramado o golpe de Estado que em 2002 manteve afastado Chávez do poder por dois dias, e por pouco não o assassinou. Ali mesmo, nos estúdios da emissora, os representantes da oligarquia reuniram-se para urdir o plano de típico sabor latino-americano, a contar com o apuro da mídia em geral e quatro estrelas de quepes imensos. Concessões de canais são da competência do Estado, conforme a Constituição venezuelana. Quanto à liberdade de expressão e ao exercício da crítica, há notável diferença entre a defesa destes direitos democráticos e o inextinguível propósito de conspirar contra o Estado de Direito. Aliás, observo certo parentesco entre a mídia de lá e de cá.
(blog do Mino Carta)

Sirva-se um elixir para a democracia

Estado de S.Paulo – 27 de maio de 2007
Caderno Aliás

Entrevista com o sociólogo Boaventura de Sousa Santos

Sirva-se um elixir para a democracia

Boaventura propõe uma nova teoria crítica para sacudir as ciências sociais e a emancipação política que virá da aproximação de representantes e representados

Laura Greenhalgh

Longe e perto. Assim está o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos em relação ao Brasil. Ainda que mantenha vínculos estáveis de trabalho com a Universidade de Coimbra, onde dirige o Centro de Estudos Sociais, o professor viaja bastante, realiza pesquisas e conferências em diferentes partes do mundo e não raro vem ao Brasil - país que freqüenta desde os anos 70, quando morou em favelas no Rio para realizar a pesquisa de sua tese de doutoramento, defendida na Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Na sua agenda movimentada já consta uma próxima vinda ao País no mês de setembro, para participar de um evento ao qual dá a maior importância: um encontro de catadores de lixo em Belo Horizonte. O sociólogo também é poeta. Seus detratores dirão que aí mora o perigo. Para seus admiradores, eis o que o torna mais original.

Na semana passada, ao repassar a mobilização de setores da sociedade brasileira - greve na USP, invasão da hidrelétrica de Tucuruí (PA) por manifestantes, pancadaria na Assembléia Legislativa de São Paulo - Boaventura não se deteve na análise dessas erupções de violência, nem nas investigações que têm rendido navalhadas na biografia de muitos políticos. Preferiu analisar os titubeios da democracia, sistema político que defende sem hesitar, mas para o qual prescreve um fortificante: combinar o modelo representativo com mecanismos participativos - como o controle do orçamento público pela população. O que parece complicado fica mais claro quando o sociólogo explica por que, nos dias que correm, os cidadãos se sentem tão pouco representados por aqueles em quem votam e instalam no poder. “A democracia vive dias de crise. E não pára de crescer a distância entre representantes e representados.”

Nesta entrevista ao Aliás, explica como e quando esse processo teria começado, por que vivemos um déficit de democracia e uma abundância de corrupção no mundo, e aproveita para batalhar seus conceitos teóricos. Entre eles, a razão indolente, que justificaria a aceitação do mundo tal como está; a sociologia das emergências, que trata de valorizar experiências humanas “pequeninas”, mas embriões de transformações maiores; e a ecologia dos saberes, que contesta o credo de que só o conhecimento científico salvará o planeta. A bordo dessas reflexões, presentes no livro Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social, que a editora Boitempo acaba de lançar no Brasil, o olhar de Boaventura percorre uma vasta geografia: da juventude brasileira “que, em termos sociológicos, está ausente do Brasil”, aos milhões de trabalhadores chineses que vagam por seu país à procura de emprego, “sem direitos e sem garantias”.

Já pelo título do seu livro, o senhor parece propor uma ampla revisão de conceitos no âmbito das ciências sociais. É isso mesmo?

As teorias críticas que temos hoje e as formas de emancipação política que herdamos do século 20 não nos servem mais. Teríamos, como alternativa, parar de pensar nessas questões, o que não me parece boa idéia porque as sociedades contemporâneas, mais do que nunca, precisam de pensamento crítico e de princípios. Como precisam urgentemente de alternativas do “viver melhor” num mundo mais justo.

Onde as teorias críticas clássicas nos deixaram na mão?

O vazio crítico aparece em vários níveis, eu poderia identificar alguns deles. Estamos assistindo a uma crise grave dos mecanismos da democracia representativa. Porque representação, em termos teóricos, sempre significou duas coisas: autorização e prestação de contas. ‘Com meu voto, eu autorizo alguém a governar em meu nome e depois peço-lhe contas’. Acontece que a evolução dos sistemas representativos acabou por eliminar a idéia do prestar contas. Hoje falamos de representação como um sistema de autorização política, por via eleitoral. E ficou bem mais difícil para o cidadão fazer o acerto de contas, a não ser num próximo pleito eleitoral, eventualmente negando seu voto a um determinado candidato. A verdade é que a distância entre representante e representado aumentou demais. Criou-se o que eu chamo de “patologia da representação”, bem como uma “patologia da participação”, pois o cidadão não participa por achar que seu voto não conta. Vê que os partidos, enquanto estão em luta eleitoral, prometem uma coisa, mas, no governo, fazem outra. O eleitor perde a confiança no sistema e deixa de atuar nele. A democracia representativa já não consegue esconder suas debilidades.

Quais seriam?

Tal como a entendemos hoje, a democracia transita por dois “mercados” diferentes, porém muito articulados. O mercado econômico, que é o dos valores com preço, e o mercado político, dos valores sem preço. Por este passam as ideologias, os códigos de ética. O que aconteceu? Nos últimos 20 anos houve uma fusão de “mercados”, sob a égide de um modelo econômico segundo o qual tudo se compra e tudo se vende. Inclusive no mercado político, o que nos leva a essa corrupção desenfreada.

Então, a corrupção seria uma espécie de filha da união entre sistema econômico e sistema político?

Sim. Ambos tinham mecanismos de concorrência distintos. Um batalhava por preços, lucros. Outro, por preferências do cidadão, votos. Juntam-se os mecanismos e surge a corrupção endêmica, que não é um fenômeno do partido A ou do partido B, mas vale para todos.

O senhor chegaria a afirmar que o voto virou mercadoria?

Sim, à medida que os representantes, eleitos pelo voto, permitem-se ser vendidos e comprados. Seja em função dos interesses de um curral eleitoral, de uma região, do país ou simplesmente do bolso do político. Isso começou a acontecer em larga escala a partir dos anos 90, na onda de privatizações dos serviços públicos. Quando estes serviços começaram a ser privatizados, vislumbrou-se uma riqueza enorme, feita de investimento nacional, que passaria a ser gerida por leis do mercado. Mas, quem regula estes serviços? O Estado. Daí as articulações crescentes entre governos e grupos econômicos.

É impressão ou a corrupção no mundo cresceu nos últimos anos?

Cresceu fundamentalmente porque houve uma mudança no padrão ético. A idéia de que o Estado é “diabólico” e a perda dos valores do serviço público, eram sintonizados aos ideais republicanos - como o de que o bem do público prevalece sobre o privado, ou a regra de que eu, funcionário público, necessariamente devo ganhar muito menos do que os que contratam comigo - ora, esses valores foram corrompidos. Fixou-se a idéia de que o que é bom vem da sociedade civil, não do Estado.

Mas, lá trás, viu-se que o Estado centralizador acabava derivando para o Estado paternalista e corrupto.

De fato. Mas tiremos um exemplo do mundo empresarial. Quando uma companhia está mal, reúne-se o conselho de administração para buscar soluções. Ninguém prefere fechar a empresa de cara, certo? Não se fez isso com relação ao Estado. Não se buscou reformá-lo. Ao contrário, disseminou-se a idéia de que ele é “irreformável”. O que vemos hoje? Vemos que essa visão mudou. No momento inicial de imposição do modelo neoliberal, criou-se não só a idéia de que o Estado é corrupto - o que era verdade - mas a de que o Estado era irrecuperável. Isso, até meados dos anos 90, quando tanto o Banco Mundial quanto o FMI passaram a reavaliar suas posições, chegando à conclusão de que não se pode confiar em Estado fraco. Bom mesmo é o Estado forte, eficiente e transparente. Enterraram a idéia de que não é reformável! Essa mudança aparece claramente no relatório de 1997 do Banco Mundial, com uma análise detalhada do desmantelamento do estado soviético.

Hoje o que se vê hoje na Rússia são infiltrações das máfias em todo o aparelho estatal e na burocracia. Por que aquilo deu nisso?

Porque diante do Estado desacreditado cresceram as organizações mafiosas. Elas ocuparam o vazio de autoridade. Daí os magnatas russos. O senhor Abramovich, por exemplo, é dono do Chelsea, o time inglês que ganhou campeonatos na Inglaterra... E surgiram outros tantos milionários como ele. Ficaram formidavelmente ricos com o encolhimento do Estado. Por isso, proponho rever a política à luz de uma nova teoria crítica. Não devemos detonar a democracia representativa, mas fortalecê-la.

Como intensificar a democracia?

Uma boa opção seria aproximá-la da democracia participativa, que incorpora melhor a prestação de contas.

Professor, o senhor acompanhou com entusiasmo a experiência petista do orçamento participativo em Porto Alegre. Mas o partido acabou sendo derrotado pelo voto.

A idéia não saiu derrotada junto à população, tanto que a prefeitura de Porto Alegre continua a adotá-la. E mais: há orçamento participativo em 1.200 cidades da América Latina. No meu site, no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, mantenho um observatório global das práticas de orçamento participativo e vejo que muitas cidades européias hoje se valem desse mecanismo testado em cidades latino-americanas. Não sou eu quem diz, mas o Banco Mundial: o orçamento participativo, além de ter surtido efeito sobre a distribuição da renda, permitiu que os empréstimos da instituição ficassem mais protegidos da corrupção. Veja o caso dos conselhos municipais de saúde do Brasil: como funcionam bem, de maneira independente, com poder deliberativo e participação dos cidadãos! Esse modelo não se choca com a representação, apenas se articula com ela. Só que os partidos, de modo geral, não gostam dessa conversa de participação popular, pois a sentem como ameaça... Por essas e outras é que setores da população começam a alimentar um certo fundamentalismo contra os partidos. Reagem dizendo que todos estão podres, todos são vendidos, etc.

Aconteceu esta semana: um ministro da base aliada do governo é envolvido em denúncias de corrupção, entrega o cargo, mas se articula para fazer o sucessor. Esse tipo de manobra não faz com que o cidadão passe a descrer a política?

Evidente. Mas isso não acontece só no Brasil. Na Venezuela, Chávez só consegue fazer o que faz porque, lá trás, os partidos já vinham se degradando. Em compensação, na Itália, nos anos 90,a operação Mãos Limpas levou 630 empresários e líderes políticos para a prisão - só em Milão. Foi um processo de limpeza da corrupção que pegou amplos setores.

O senhor já disse que há mais corrupção no mundo. Em contrapartida, há menos democracia?

Exato. Há um déficit de democracia cada vez maior. Nos últimos 20 anos, agravaram-se os problemas da desigualdade no mundo, como prova o relatório do Pnud de 2000. Os 500 indivíduos mais endinheirados do planeta têm tanta riqueza quanto os 40 países mais pobres do globo, países que somam uma população de 1 bilhão de pessoas. Sendo assim, os países periféricos ficaram incapazes de fazer frente às políticas hegemônicas. Neste ponto, eu ressalto o papel meritório de Brasil, Índia e África do Sul, ao cobrarem mais seriedade nas negociações internacionais. Veja agora o que aconteceu com Paul Wolfowitz, retirado do Banco Mundial. A maioria dos países-membros do banco pediu a saída dele, por corrupção. Mas Wolfowitz só caiu porque a União Européia (UE) resolveu derrubá-lo. Como no banco o poder de voto é correspondente ao PIB dos países-membros, de nada adiantaria os 180 mais pobres pedirem a cabeça dele. Isso é déficit democrático. Podemos continuar a análise pensando na ONU, na guerra do Iraque, em Darfur... Se pensarmos em tudo isso vamos, como se diz aqui em Portugal, desfiar um rosário de muitas contas. Quanto à corrupção, ela também é um fenômeno em escala global, mas se dá em graus diferentes. Ela é pequena nos países nórdicos. O mesmo não posso dizer de Portugal, infelizmente. Aqui ela cresce e vejo isso claramente em pesquisas que faço sobre o sistema judiciário. Na África, outra realidade que também estudo, trata-se de problema gravíssimo. Grande parte da ajuda internacional para as nações africanas ou permanece nas mãos dos doadores ou vai para as mãos de líderes políticos locais. Não chega a quem de fato necessita dela.

Em certos países, experimenta-se a democracia direta. O que o senhor acha disso?

Os referendos, como as consultas e os conselhos populares, são mecanismos importantes para garantir participação. Mas não podem ser usados indiscriminadamente, exigem certas condições, inclusive culturais. A Suíça tem uma vastíssima tradição nessa área. Lá os referendos são uma prática incrustada na cultura política do país, e funcionam muito bem. Mas isso depende do grau de informação do cidadão e dos meios disponíveis para impedir a manipulação da opinião pública. Vamos avaliar o que aconteceu em Portugal. Grupos de alto poder econômico, ligados à Igreja Católica, desviaram a discussão sobre o aborto com anúncios caríssimos, com intervenções televisivas, numa luta desigual. Fora isso, a Igreja intensificou seu trabalho publicitário gratuito nas homilias das missas. Mesmo assim, ao passar por um segundo referendo, o aborto foi legalizado.

O senhor aponta “a razão indolente” como um mal do nosso tempo. O que isso significa?

Ela é como uma pessoa preguiçosa. É a razão que não trabalha, não pensa, não se esforça, acomoda-se na superficialidade das coisas. Anos atrás, o modelo thatcherista foi apresentado como uma idéia acima de qualquer contestação, idéia para a qual não havia alternativa. Foi aceita no mundo inteiro, num movimento passivo, guiado pela razão indolente. Hoje, aceitamos que existem economias e economias, que as européias são diferentes da americana, que esta por sua vez é diferente das latino-americanas, e assim por diante.

A discussão sobre as mudanças climáticas, que hoje se impõe em termos globais, pode decretar o fim da razão indolente?

Sem dúvida. Não escaparemos disso. O meio-ambiente é justamente uma área em que a razão indolente dos Estados têm sido perversa. Evita-se pensar no tema fora dos ciclos eleitorais. Para enfrentar esse problema imenso, que afeta a todos, pede-se uma razão muito mais atenta, muito mais crítica e muito mais cautelosa no sentido de suspeitar daquilo que nos parece natural. Por exemplo: até pouco tempo o governo dos EUA sustentava que não havíamos de nos preocupar com o aquecimento global porque ele não estava provado cientificamente. Então os países perderam um tempo enorme para reagir ao problema, relaxados numa indolência estrutural e política. Ora, num mundo com risco de colapso ecológico, essa indolência é trágica! As pessoas no Brasil parecem ignorar o ritmo de destruição da Amazônia. É absolutamente preocupante! Não é mais uma questão ambiental, mas de sobrevivência da humanidade. Por que o problema não entra para valer na agenda política? Porque esbarra em interesses econômicos. Voltamos ao ponto inicial.

O senhor enfatiza a necessidade de os países reagirem na chave do multiculturalismo. E condena o “vazio niilista” pós-moderno. Como apoiador de primeira hora do Fórum Social Mundial (FMS), não acha que o slogan “um outro mundo é possível” também é um tanto vazio?

Agradeço esta sua pergunta. Tenho acompanhado o movimento e continuo acreditando que ele é remédio contra o niilismo. Este slogan hoje é repetido em todo mundo exatamente por sua abertura. O movimento não está dizendo que o “outro mundo” é capitalista, socialista ou ambiental. Está dizendo que este sistema atual, que produz desigualdade, catástrofe ambiental e nos mergulha em processos de guerra, não é bom. Queremos outra coisa. O que é? Não sabemos. Vivemos num mundo de perguntas fortes e respostas fracas.

Seu livro opõe duas categorias: a “sociologia das ausências” e a “sociologia das emergências”. Como chegou a essa formulação teórica?

A razão indolente produz ausências. Produz exclusão. Dou um exemplo: a razão indolente acredita que só a ciência é pensamento rigoroso. E todos os outros saberes são irracionais Acontece que a biodiversidade nos mostra o quão importante é o saber dos índios, o saber dos povos originários de certas regiões. Saberes sem os quais não conseguiremos preservá-la. Portanto, a visão indolente da ciência, como fonte única de saber, produziu, por exemplo, a ausência do pensamento indígena. É simples: se eu quero ir à lua, precisarei do pensamento científico. Mas se eu quero preservar a diversidade amazônica, preciso conhecer o pensamento do índio. Já a sociologia das emergências é o outro lado disso tudo. É a incorporação de saberes, a inclusão de experiências humanas que, mesmo pequeninas, funcionam como embriões de alternativas. Não é à toa que, hoje, a economia solidária é a sétima do mundo! Microcréditos, mutualidades, cooperativas, projetos populares, programas do Terceiro Setor...não é pouca coisa. Em setembro vou a Belo Horizonte participar do Festival do Lixo e da Cidadania. São catadores que se organizaram em cooperativas e fazem um trabalho incrível para melhorar suas vidas. Trata-se de um movimento absolutamente vibrante e inovador.

Ao se valer dessas duas sociologias, está levando em conta o “fator China”, que pode mudar completamente o jogo no plano mundial?

A China é a prova de que Max Weber errou. O grande sociólogo nos fez acreditar que o capitalismo só se desenvolveria no Ocidente, devido a uma série de fatores. Mas hoje temos uma China pujante em termos econômicos, porém politicamente anômala, uma China que combina economia de mercado com partido único comunista. Claro, este país será um grande jogador global, mas temos de fazer todos os esforços para que ele venha se juntar à comunidade internacional em termos de direitos humanos e democracia. Atualmente contam-se 100 milhões de operários chineses vagando pelo país, de cidade em cidade, à procura de emprego. Cem milhões de trabalhadores sem nenhum direito, sem garantias, sem nada. São os bóias-frias chineses. Isso é dramático. Tenho trabalhado muito na África e, por lá, meus colegas mostram uma visão muito positiva em relação à China. Porque ela está emprestando dinheiro para os países africanos sem impor condições, apenas interessada em sugar-lhes matéria-prima. É dinheiro alto, que chega sem aquelas condições do Banco Mundial, do tipo “você tem que ser democrático, tem que fazer isso, aquilo...”. Os chineses dão o dinheiro e a liberdade dos beneficiários se desenvolverem como acharem melhor. No contexto africano, isso é altamente emancipatório. A China já é o maior investidor estrangeiro em Angola, por exemplo.

Estamos assistindo à construção de um novo imperialismo?

As opções chinesas hoje se confundem com opções de países capitalistas e, de certo modo, com opções de sistemas coloniais. Ela investe na infra-estrutura de países africanos para garantir a circulação e exportação das matérias-primas de que necessita. A China será absolutamente voraz em termos de recursos naturais.

O que é “ecologia dos saberes”?

Uso a expressão na tentativa de incorporar visões que vão além do conhecimento técnico-científico. Tenho andado pela África. Você não imagina o quanto aprendo sentado embaixo de uma árvore, escutando um ancião daquelas comunidades remotas. É outra fonte de saber.

O senhor morou em favelas no Rio, nos anos 70, para fazer sua tese de doutorado. O que sente quando vê morros cariocas conflagrados na guerra do tráfico?

Quando morei no Rio, em plena ditadura, não havia essa violência toda. Eu me sentia até mais seguro na favela. Hoje o que vejo são respostas violentas e desorganizadas da população ao enfrentar a profunda desigualdade brasileira. Não se esqueça de que o Brasil é um dos países mais injustos do mundo. Esse tipo de resposta social se verifica em outros lugares, também. Johannesburgo tem taxas de violência superiores às do Rio. Os negros sul-africanos achavam que o fim do apartheid lhes daria uma sociedade melhor, mas os brancos continuam mais ricos e influentes. O que vejo no Brasil é, sobretudo, a situação de desespero da juventude face a uma economia que não a absorve e uma sociedade que a expõe à corrupção todos os dias. Como não apelar para a violência? Como não recorrer ao lucro rápido das drogas? Em termos sociológicos, os jovens estão ausentes do Brasil.

sábado, 26 de maio de 2007

Wladimir Herzog

Editorial do Estado de S.Paulo três dias após a morte do jornalista.


Os limites da tolerância

Estado de S.Paulo
28 de outubro de 1975

É pública e notória a intolerância que este jornal adquiriu face a tudo que desagregue o tecido social expresso na lei. Nosso apreço por esta sempre valeu mais pela consciência que ela significa e alimenta que pelas fórmulas sob que se apresenta. Tanto assim que soubemos romper com a própria legalidade e perfilar-nos com a excepcionalidade, quando a fórmula foi usada contra a consciência, inibindo-a, embotando-a ou mesmo pervertendo-a. O que não podemos jamais sacrificar foi nosso horizonte democrático de situação – o Direito.

Porque a experiência nos ensinou que não há arbitrariedade, por flagrante que seja, que não possa ser acoitada sob a capa de alguma legalidade. E este é o risco maior dos chamados instrumentos de exceção da Revolução de 1964, cuja extinção, desuso ou limitação lamentamos não conseguir ainda enxergar; pois quem se faz autor da lei, sem a cautela escrupulosa de aferi-la, na índole e no exercício, pelo Direito como um fim, escancara a estrada sem obstáculo do voluntarismo e da prepotência.

O imperativo de alimentar na opinião a consciência aguda do Direito e do respeito à pessoa humana tem freqüentemente incitado este jornal a repisar o assunto das prisões efetuadas pelos diversos organismos de segurança, sendo indiferente a profissão política dos elementos presos, quando as prisões mesmas surgem aluadas de desrespeito à consciência jurídica: escapam à vigilância, subtraem-se a qualquer julgamento, até que sejam completadas, na calada e na clandestinidade. As notas oficiais com que depois são divulgadas e os esgotamentos dos prazos de incomunicabilidade dos presos chegam tarde demais para sanar a violência feita à opinião na origem. Ela continua a ver na prisão um rapto ou um seqüestro, porque não há como aceitar, na defesa da lei e do Estado, o pacto com a infração e o desafio a um dos Poderes de Estado.

Assim, não é a condição de jornalista de Wladimir Herzog, diretor do Departamento de Jornalismo do Canal 2, TV-Cultura, que nos faz voltar ao assunto. É a condição do cidadão de que até sábado à tarde estava revestido o sr. Wladimir Herzog, com direito à tutela do Estado. Foi certamente confiante nessa proteção que, intimado a comparecer ao Departamento de Operações Internas (DOI) do II Exército, se comprometeu a fazê-lo sem necessidade de escolta policial, à hora prevista, conforme se pode concluir do próprio comunicado oficial divulgado pelo Comandante do II Exército.

Depois de seu fim trágico, a declaração, de “assinatura ilegível” e rasgada em pedaços, encontrada junto ao cadáver, e recomposta “para os devidos fins legais”, passou a ser peça do comunicado do II Exército, junto com outros dados do depoimento tomado a termo. Ela soa ali como uma pena póstuma de execração, uma damnatio memoriae de quem não esperou pelo direito de se defender e cujas atitudes, a juízo do órgão do II Exército, “não faziam supor o gesto extremo por ele tomado”.

A nota é mais um reflexo do clima que de há muito se instaurou – já desde dias do governo passado – e que marca bem os antecedentes do fim lamentável do sr. Wladimir Herzog. Não iremos especular sobre este último, já que não nos interessa levar lenha a uma fogueira que jamais ateamos.

Interessa-nos, sim, o dano à Nação pelo clima de inquietação, de medo, de delação sistemática, de exposição impiedosa da fama de cidadãos a quem não foi dada ainda a oportunidade de se defender perante os tribunais competentes; interessa-nos que a formação de culpa seja feita na Justiça e, quando for o caso, na Justiça Militar, evitando-se o prejulgamento que tende a dar por prescindível o processo. Interessa-nos saber a responsabilidade por esse clima de terrorismo; pois é de terrorismo que se trata quando se multiplicam as prisões sem mandado judicial, ou arrepio da lei, à margem da ordem e baldadas todas as possibilidades de habeas corpus.

Postulamos sempre investigações, vigilância na defesa das instituições democráticas e armas adequadas à preservação dos ideais de 1964. E, porque nestes comungamos desde sua origem, temos todo o direito e autoridade para reclamar que tais investigações se façam dentro de quadros jurídico-institucionais bem definidos e conhecidos de todos, para que não se desminta o que tanto nos custou preservar e salvar. Desgraçadamente não temos conhecido bastante eco; e temos que presenciar o desgaste, a decomposição, o descrédito – que notas oficiais não podem, por si sós, recuperar.

Resta-nos, entretanto, uma convicção: a de que um tal clima, pelos traços mesmo de desacato à ordem e à paz que envolve, é obra e benefício de forças que se opõem ao governo do presidente Ernesto Geisel. Há poucos dias, falando aos presidentes dos diretórios regionais da Arena e à Comissão Executiva Nacional, s.exa. mencionava a liberdade e a tranqüilidade de que todos se deviam sentir assegurados neste País, desde que não alinhados entre as forças que se opõem à ordem. Queremos acreditar que s.exa. não faz exceção de pessoas e que reserva aos infratores de dentro do aparelho estatal o mesmo tratamento exemplar de que ameaçou os que se acham fora, na oposição.

A existência confessa de “porões na administração”, com que há alguns meses se descartou um exame mais detido das primeiras arbitrariedades denunciadas e com que se evitou o comparecimento à Câmara do ministro da Justiça, tem seus limites. Eles são os limites mesmos da ordem hierárquica, que ora parecem impunemente ignorados; eles são o desconhecimento e o menoscabo das intenções do chefe do Executivo, tão solene e espontaneamente declaradas. Eles são, enfim, a propaganda negativa de uma administração e de um governo, que o trauma da morte de Wladimir Herzog, mesmo que se acredite ter sido infligida pelas próprias mãos, não pode deixar de definir.

Que haja porões em toda e qualquer administração – de corrupção, de desafio à ordem e de afrontamento à lei – é incontestável. Que esses porões se transformem num poder dentro do Poder não se justificará por temor algum. Eles são o maior desafio e a maior contestação à Revolução de 1964 – porque uma contestação que toma forma de confiança. Ou, antes, dos abusos da confiança. É essa uma contestação interna a mais insidiosa guerra psicológica que o governo pode conhecer. E que, com tanta maior razão, não poderá tolerar.

quinta-feira, 24 de maio de 2007

A Lei - Frédéric Bastiat (1801-1850)

Confrades,

Este é o texto que a Marilene comentou na nossa reunião de quarta-feira, dia 23 de maio.
Abraços
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A LEI

Frédéric Bastiat (1801-1850)

A LEI PERVERTIDA! E com ela os poderes de polícia do Estado também pervertidos! A lei, digo, não somente distanciada de sua própria finalidade, mas voltada para a consecução de um objetivo inteiramente oposto! A lei transformada em instrumento de qualquer tipo de ambição, ao invés de ser usada como freio para reprimi-la! A lei servindo à iniqüidade, em vez de, como deveria ser sua função, puni-la!

Se isto é verdade, trata-se de um caso muito sério, e é meu dever moral chamar a atenção de meus concidadãos para ele.

A vida é um dom de Deus

Recebemos de Deus um dom que engloba todos os demais. Este dom é a vida - vida física, intelectual e moral.

Mas a vida não se mantém por si mesma. O Criador incumbiu-nos de preservá-la, de desenvolvê-la e de aperfeiçoá-la.

Para tanto, proveu-nos de um conjunto de faculdades maravilhosas. E nos colocou no meio de uma variedade de recursos naturais. Pela aplicação de nossas faculdades a esses recursos naturais, podemos convertê-los em produtos e usá-los. Este processo é necessário para que a vida siga o curso que lhe está destinado.

Vida, faculdades, produção - e, em outros termos, individualidade, liberdade, propriedade - eis o homem. E, apesar da sagacidade dos líderes políticos, estes três dons de Deus precedem toda e qualquer legislação humana, e são superiores a ela.

A vida, a liberdade e a propriedade não existem pelo simples fato de os homens terem feito leis. Ao contrário, foi pelo fato de a vida, a liberdade e a propriedade existirem antes que os homens foram levados a fazer as leis.

O que é a lei?

O que é então a lei? É a organização coletiva do direito individual de legítima defesa.
Cada um de nós tem o direito natural, recebido de Deus, de defender sua própria pessoa, sua liberdade, sua propriedade. Estes são os três elementos básicos da vida, que se complementam e não podem ser compreendidos um sem o outro. E o que são nossas faculdades senão um prolongamento de nossa individualidade? E o que é a propriedade senão uma extensão de nossas faculdades?

Se cada homem tem o direito de defender - até mesmo pela força - sua pessoa, sua liberdade e sua propriedade, então os demais homens têm o direito de se concertarem, de se entenderem e de organizarem uma força comum para proteger constantemente esse direito.

O direito coletivo tem, pois, seu princípio, sua razão de ser, sua legitimidade, no direito individual. E a força comum, racionalmente, não pode ter outra finalidade, outra missão que não a de proteger as forças isoladas que ela substitui.

Assim, da mesma forma que a força de um indivíduo não pode, legitimamente, atentar contra a pessoa, a liberdade, a propriedade de outro indivíduo, pela mesma razão a força comum não pode ser legitimamente usada para destruir a pessoa, a liberdade, a propriedade dos indivíduos ou dos grupos.

E esta perversão da força estaria, tanto num caso como no outro, em contradição com nossas premissas. Quem ousaria dizer que a força nos foi dada, não para defender nossos direitos, mas para destruir os direitos iguais de nossos irmãos? E se isto não é verdade para cada força individual, agindo isoladamente, como poderia sê-lo para a força coletiva, que não é outra coisa senão a união das forças isoladas?

Portanto, nada é mais evidente do que isto: a lei é a organização do direito natural de legítima defesa. É a substituição da força coletiva pelas forças individuais. E esta força coletiva deve somente fazer o que as forças individuais têm o direito natural e legal de fazerem: garantir as pessoas, as liberdades, as propriedades; manter o direito de cada um; e fazer reinar entre todos a JUSTIÇA.

Um governo justo e estável

E se existisse uma nação constituída nessa base, parece-me que a ordem prevaleceria entre o povo, tanto nos fatos, quanto nas idéias. Parece-me que tal nação teria o governo mais simples, mais fácil de aceitar, mais econômico, mais limitado, menos repressor, mais justo e mais estável que se possa imaginar, qualquer que fosse a sua forma política.

E, sob tal regime, cada um compreenderia que possui todos os privilégios, como também todas as responsabilidades de sua existência. Ninguém teria o que reclamar do governo, desde que sua pessoa fosse respeitada, seu trabalho livre e os frutos de seu labor protegidos contra qualquer injustiça. Se felizes, não teríamos de atribuir tampouco ao governo nossos deveres, da mesma forma que nossos camponeses não lhe atribuem a culpa da chuva de granizo ou das geadas. O Estado só seria conhecido pelos inestimáveis benefícios da SEGURANÇA, proporcionados por esse tipo de governo.

Pode-se ainda afirmar que, graças à não-intervenção do Estado nos negócios privados, as necessidades e as satisfações se desenvolveriam numa ordem natural; não se veriam mais as famílias pobres buscando instrução literária antes de ter pão para comer. Não se veria a cidade povoar-se em detrimento do campo ou o campo, em detrimento da cidade. Não se veriam os grandes deslocamentos de capital, de trabalho, de população, provocados por medidas legislativas.

As fontes de nossa existência tornam-se incertas e precárias com esses deslocamentos criados pelo Estado. E, ainda mais, esses atos agravam sobremaneira a responsabilidade dos governos.

A completa perversão da lei

Infelizmente, a lei nem sempre se mantém dentro de seus limites próprios. Às vezes os ultrapassa, com conseqüências pouco defensáveis e danosas. É o que aconteceu quando a aplicaram para destruir a justiça, que ela deveria salvaguardar. Limitou e destruiu direitos que, por missão, deveria respeitar. Colocou a força coletiva à disposição de inescrupulosos que desejavam, sem risco, explorar a pessoa, a liberdade e a propriedade alheia. Converteu a legítima defesa em crime para punir a legítima defesa.

Como se deu esta perversão da lei? Quais foram suas conseqüências?

A lei perverteu-se por influência de duas causas bem diferentes: a ambição estúpida e a falsa filantropia.

Falemos da primeira.

A tendência fatal da humanidade

A autopreservação e o autodesenvolvimento são aspirações comuns a todos os homens. Assim, se cada um gozasse do livre exercício de suas faculdades e dispusesse livremente dos frutos de seu trabalho, o progresso social seria incessante, ininterrupto e infalível.

Mas há ainda outro fato que também é comum aos homens. Quando podem, eles desejam viver e prosperar uns a expensas dos outros. Não vai aí uma acusação impensada, proveniente de um espírito desgostoso e pessimista. A história é testemunha disso pelas guerras incessantes, as migrações dos povos, as perseguições religiosas, a escravidão universal, as fraudes industriais e os monopólios, dos quais seus anais estão repletos.

Esta disposição funesta tem origem na própria constituição do homem, no sentimento primitivo, universal, invencível que o impele para o bem-estar e o faz fugir da dor.

Propriedade e espoliação

O homem não pode viver e desfrutar da vida, a não ser pela assimilação e apropriação perpétua, isto é, por meio da incessante aplicação de suas faculdades às coisas, por meio do trabalho. Daí emana a propriedade.

Por outro lado, o homem pode também viver e desfrutar da vida, assimilando e apropriando-se do produto das faculdades de seu semelhante. Daí emana a espoliação.

Ora, sendo o trabalho em si mesmo um sacrifício, e sendo o homem naturalmente levado a evitar os sacrifícios, segue-se daí que - e a história bem o prova - sempre que a espoliação se apresentar como mais fácil que o trabalho, ela prevalece. Ela prevalece sem que nem mesmo a religião ou a moral possam, nesse caso, impedi-la.

Quando então se freia a espoliação? Quando se torna mais árdua e mais perigosa do que o trabalho.

É bem evidente que a lei deveria ter por finalidade usar o poderoso obstáculo da força coletiva contra a funesta tendência de se preferir a espoliação ao trabalho. Ela deveria posicionar-se em favor da propriedade contra a espoliação.

Mas, geralmente, a lei é feita por um homem ou um classe de homens. E como seus efeitos só se fazem sentir se houver sanção e o apoio de uma força dominante, é inevitável que, em definitivo, esta força seja colocada nas mãos dos que legislam.

Este fenômeno inevitável, combinado com a funesta tendência que constatamos existir no coração do homem, explica a perversão mais ou menos universal da lei. Compreende-se então por que, em vez de ser um freio contra a injustiça, ela se torna um instrumento da injustiça, talvez o mais invencível. Compreende-se por que, segundo o poder legislador, ela destrói, em proveito próprio, e em diversos graus, no resto da humanidade, a individualidade, através da escravidão; a liberdade, através da opressão; a propriedade, através da espoliação.

Vítimas da espoliação legal

É próprio da natureza dos homens reagir contra a iniqüidade da qual são vítimas. Então, quando a espoliação é organizada pela lei, em prol das classes dos que fazem a lei, todas as classes espoliadas tentam, por vias pacíficas ou revolucionárias, participar de algum modo da elaboração das leis. Estas classes, segundo o grau de lucidez ao qual tenham chegado, podem-se propor dois objetivos bem diferentes ao perseguir a conquista de seus direitos políticos: ou querem fazer cessar a espoliação legal ou aspiram a participar dela.

Malditas, três vezes malditas as nações nas quais este último objetivo domina as massas e estas vêm a deter o poder de legislar!

Até então a espoliação legal era exercida por um pequeno número de pessoas sobre as demais. É assim que se observa entre os povos cujo direito de legislar está concentrado em algumas mãos. Mas, uma vez tornado universal, busca-se o equilíbrio na espoliação universal. Em lugar de extirpar o que a sociedade continha de injustiça, generaliza-se esta última. Tão logo as classes deserdadas recobram seus direitos políticos, o primeiro pensamento que as assalta não é o de livrar-se da espoliação (isto suporia nelas conhecimentos que não podem ter), mas organizar, contra as outras classes e em seu próprio detrimento, um sistema de represálias - como se fosse preciso, antes do advento do reinado da justiça, que uma cruel vingança venha feri-las, umas por causa da iniqüidade, outras por causa da ignorância.

Resultados da espoliação legal

Não poderiam, pois, ser introduzidas na sociedade mudança e infelicidade maiores que esta: a lei convertida em instrumento de espoliação.

Quais as conseqüências de semelhante perturbação? Seriam necessários volumes e mais volumes para descrevê-las todas. Contentemo-nos em indicar as mais notáveis.

A primeira é a que apaga em todas as consciências a noção do justo e do injusto.

Nenhuma sociedade pode existir se nela não impera de algum modo o respeito às leis. Porém, o mais seguro para que as leis sejam respeitadas é que sejam de fato respeitadas.

Quando a lei e a moral estão em contradição, o cidadão se acha na cruel alternativa de perder a noção de moral ou de perder o respeito à lei, duas infelicidades tão grandes tanto uma quanto a outra e entre as quais é difícil escolher.

Fazer imperar a justiça está tão inerente à natureza da lei, que lei e justiça formam um todo no espírito das massas. Temos todos forte inclinação a considerar o que é legal como legítimo, a tal ponto que são muitos os que falsamente consideram como certo que toda a justiça emana da lei. Basta que a lei ordene e consagre a espoliação para que esta pareça justa e sagrada diante de muitas consciências. A escravidão, a restrição, o monopólio acham defensores não somente entre os que deles tiram proveito como entre os que sofrem as suas conseqüências.

terça-feira, 22 de maio de 2007

Focas se perdem no dialeto das redações

Allan Santin, da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP)

Nas redações os profissionais falam palavras diferentes à maioria da população. Muitas palavras vêm do inglês, outras, do português mesmo, mas não parecem fazer nenhum sentido. Trata-se da linguagem técnica utilizada pelos jornalistas. Dentro da faculdade, aparece uma coleção delas, mas é no mercado de trabalho que o ‘foca’ se vê obrigado a aperfeiçoar o seu vocabulário, para entender o que se passa ao seu redor. Em tempo, foca é a expressão utilizada para chamar os repórteres iniciantes. Ou seja, um dia, todo jornalista já foi um.


Foca
Segundo o Guia dos Curiosos, organizado por Marcelo Duarte, o termo “foca” traduz o novato. No guia, que tem um parágrafo sobre o tema, Tião Gomes Pinto, diretor de redação da Revista Imprensa explica que “O foca sempre entra numa fria”, “aprende rápido a realizar pequenas tarefas em troca de poucas sardinhas”, “fica boiando o tempo todo”, “ele tem um ar puro, inocente”. O jornalista até criou uma lista de discussão na internet onde alguns colegas dão explicações mais etimológicas. “Foca vem da palavra latina fócula, utilizada para designar ignorantes próximos do poder e subservientes ao extremo”.

Artimanha
Como visto, as gírias usadas por jornalistas não possuem sempre um significado lógico. Porém, é de extrema importância que o futuro comunicador conheça tais expressões e seu uso. O vocabulário técnico pode ajudar inclusive na prática. No passado, nem tão pretérito assim, um jornalista que queria despistar alguma fonte ou autoridade incômoda que insistia em aparecer, pedia ao fotógrafo fazer uma “chapa 11”. A senha era infalível, o fotógrafo acendia o flash da câmera e a satisfação estava garantida. Obviamente, nada seria publicado pois nenhuma foto havia sido tirada. O termo nasceu na época em que as câmeras possuíam filmes que tinham 10 poses e ainda hoje sobrevive.

Lista de termos jornalísticos
Conheça alguns dos termos usados por jornalistas no dia-a-dia das redações.

Barriga – Publicar notícia irreal, que não teve as fontes devidamente checadas.
Cair - Diz-se de uma reportagem que não será mais utilizada. Sinônimo de derrubar.
Chupar - Plagiar. Usa-se a expressão “chupar matéria”.
Cozinha - Termo usado para definir as funções ligadas ao fechamento do jornal.
Cozinhar - Reescrever texto de outro veículo.
Drops - Notas curtas.
Emplacar - Aprovar uma pauta, realizar a matéria e publicá-la. “Emplacar matéria”.
Enxugar - Eliminar termos desnecessários, informações e observações excedentes de um texto.
Espelho - O desenho modelo da página onde entrará uma matéria, também conhecido como “Boneco”.
Esquentar - “Esquentar matéria” ou “requentar matéria”. Fala-se de matérias reutilizadas, como nova informação.
Estourar (o prazo) - Passar da hora de entregar a matéria.
Furo - É a notícia dada em primeira mão, com exclusividade.
Gancho – Fato principal da matéria que pode gerar outras, no mesmo dia ou no dia seguinte (suíte).
Iceberg – Texto extenso, que ocupa a página interna, geralmente na primeira página.
Jabá - “Presentes” dados a jornalistas para comprar a sua imparcialidade; tráfico de influência ou pagamento de propina.
Mastigar - Destrinchar, explicitar, ser didático.
Muleta - Recurso de usar palavras desnecessárias para esticar o título.
Olho – Pequena frase, geralmente citação, em destaque no meio, antes ou depois de texto.
Ombudsman - Profissional responsável pelos interesses do público. Tem a função de criticar o veículo e seu trabalho.
Lead - O primeiro parágrafo do texto, onde estão as principais informações da notícia. O quê? Quem? Quando? Como? Onde? e Por que?
Pastel - Colocar de forma errônea os elementos gráficos em uma página. Pode ocorrer em textos, fotos, legendas etc; pode ser pequeno ou grande.
Pauta - Informações e dicas para o cumprimento de uma reportagem, elaborado pelo pauteiro.
Pirulito - Texto pequeno.
Pescoço - Realizar a antecipação de cadernos e matérias que serão publicadas no final de semana.
Vazar - Divulgação de informação supostamente sigilosa e que chega a redação.

(*) Alessandra Ferreira - Professora responsável
Aluno: Allan Santin (6º período)

....
pessoal, tirei esse texto do site Comunique-se (http://www.comunique-se.com.br/conteudo/newsshow.asp?op2=&op3=&editoria=873&idnot=6325)

segunda-feira, 21 de maio de 2007

Seminário - Rádio Digital

Queridos Confrades,

Não deixem de fazer a inscrição para o Seminário de Rádio Digital que irá acontecer na Câmara dos Deputados. Entrem no www.camara.gov.br e acessem o link que está na capa do site sobre o evento.

O debate sobre rádio digital está engatinhando no Brasil, enquanto muitos países já estão com produções específicas de jornalismo.

Abraços
Walter

domingo, 20 de maio de 2007

A morte do “democrata” Octavio Frias

Altamiro Borges

O falecimento, neste domingo (29), do empresário Octavio Frias de Oliveira, dono do poderoso grupo de mídia Folha, revela um pouco da hipocrisia da política brasileira. Nas páginas da Folha de S.Paulo e até de veículos concorrentes, surgem dezenas de declarações destacando as suas virtudes de “democrata” e de “patriota”. É humano que haja respeito diante da morte e do sofrimento dos mais próximos; é natural, também, que os jornais pincem apenas as frases favoráveis, sem entrar no mérito das críticas. O que não ajuda é falsear a realidade. Não é educativo ficar tecendo loas a um figurão tão controvertido da história nacional. Um rápido levantamento confirma que o país não perdeu um democrata, muito pelo contrário.
Veículo da oligarquia rural
A Folha nasceu em 1921 sob o formato de um jornal vespertino, a Folha da Noite. Os seus fundadores, Pedro Cunha e Olival Costa, eram jornalistas de O Estado de S.Paulo e, durante algum tempo, o jornal foi impresso e distribuído por esta empresa. O próprio Júlio de Mesquita Filho, dono do oligárquico Estadão, redigiu o seu primeiro editorial. No início, o jornal manifestou simpatia pelo tenentismo e até encampou bandeiras progressistas, como a do voto secreto e do direito de férias. Mas, como registra Maurício Puls, numa cronologia bajuladora, essa linha durou pouco tempo e jornal logo virou um instrumento da direita.
Em 1929, com a saída de Pedro Cunha, a Folha passou a apoiar ostensivamente a reacionária oligarquia do café. “O resultado desta tomada de posição contra Getúlio Vargas foi a destruição do jornal. Na noite de 24 de outubro de 1930, a multidão que comemorava a deposição do presidente em São Paulo destruiu as instalações da Folha. As máquinas de escrever e os móveis foram jogados na rua e incendiados. Olival Costa assistiu ao empastelamento da esquina. Quando a multidão deixou o prédio, ele pediu licença aos soldados para entrar no prédio. Lá viu um homem vestindo seu sobretudo. Ao observar que aquela roupa era sua, recebeu a seguinte resposta: ‘Foi sua, amigo. Hoje, tudo isto é nosso’”.
A Folha deixou de circular até janeiro de 1931, quando foi comprada por outro barão do café, Octaviano Alves. Em 1932, apoiou abertamente a oligárquica Revolução Constitucionalista “para libertar o Brasil de um grupo que se instalou no poder empenhado em desfrutá-lo” – o mesmo discurso usado atualmente pela Folha. Em 1945, contrário às mudanças progressistas efetuadas por Getúlio, Octaviano vende o jornal por considerar “inútil o trabalho e insana a espera”. José Nabantino assume a empresa sob o compromisso de manter “a imparcialidade em relação aos partidos”. Mas, ainda segundo Maurício Puls, “sua orientação fiscalista guardava certa afinidade com a UDN” – a principal organização golpista deste período histórico.
Carregando presos para a tortura
Durante este longo período, a Folha de S.Paulo foi um jornal provinciano, sem maior projeção no cenário nacional. Em 13 de agosto de 1962, endividado e desolado com uma greve dos jornalistas, José Nabantino vendeu o jornal para os empresários Octávio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho. De imediato, ele se tornou um dos principais instrumentos da conspiração golpista que resultou na deposição de João Goulart. Suas manchetes espalhafatosas contra o “perigo comunista” e seus editorais raivosos contra “a corrupção e a subversão” envenenaram a classe média. O veterano jornalista Mino Carta lembra que “a mídia vinha invocando o golpe há tempos... Neste período, a Folha de S.Paulo não tinha o peso que adquiriu depois. Mas os jornais soltavam editoriais candentes implorando a intervenção militar para impedir o caos”.
Numa entrevista à jornalista Adriana Souza, o atual editor da revista Carta Capital, que já dirigiu os principais órgãos de imprensa do país e avalia que “o Brasil tem a pior mídia do mundo”, dá outros elementos indispensáveis para se entender a história da Folha de S.Paulo. Ao contrário da propaganda deste jornal, que engana muita gente com o seu falso ecletismo e a sua aparente pluralidade, Mino Carta mostra que ele sempre serviu à ditadura e construiu sua pujança graças às benesses do poder autoritário:
“A Folha de S.Paulo nunca foi censurada. Ela até emprestou as suas C-14 [veículo tipo perua, usado na distribuição do jornal] para recolher os torturados ou pessoas que iriam ser torturadas na Oban (Operação Bandeirantes). Isso está mais do que provado. É uma das obras-primas da Folha... E hoje você vê esses anúncios da Folha – o jornal desse menino idiota chamada Otavinho – que parece que ela, nos anos de chumbo, sofreu muito, mas ela não sofreu nada. Quando houve uma mínima pressão, o Sr. Frias afastou o Cláudio Abramo da direção do jornal. Digo que foi ‘mínima pressão’ porque o Sr. Frias estava envolvido na pior das candidaturas possíveis na sucessão do general Geisel. A Folha apoiava o Frota [general Sílvio Frota, ministro do Exército, da chamada linha dura, fascista]. O Cláudio Abramo foi afastado por isso”.
Prosperidade durante a ditadura
Até hoje a Folha de S.Paulo, que gosta de posar de democrata e transparente, tenta esconder esse período macabro que revela todo o seu caráter de classe e a sua postura direitista. Alguns jornalistas, talvez para conseguirem as benções dos Frias, fazem de tudo para relativizar o papel deste jornal durante a ditadura. Mario Sérgio Conti, no livro Notícias do Planalto, até registra o episódio, mas de maneira deturpada e num linguajar tipicamente reacionário. Afirma que “até o final de 1968, as organizações terroristas de esquerda destacaram alguns de seus militantes jornalistas para trabalhar na Folha... No início dos anos 70 foi a vez de policiais dos órgãos de informação da ditadura se assenhorearem do jornal”.
Outro livro, o recém-lançado “A trajetória de Octavio Frias de Oliveira”, do jornalista Engel Paschoal, é quase uma peça publicitária de adulação do dono da empresa. O próprio autor confessa que o biografado é “meu tipo inesquecível entre todos”. Mas apesar destas tentativas de ocultar a história, o envolvimento da Famiglia Frias com os órgãos de repressão é inquestionável. Até já serviu para uma cômica disputa entre duas empresas reconhecidas pelo servilismo nos duros tempos da ditadura. Como resposta a uma coluna da jornalista Barbara Gancia, uma famosa lambe-botas da Folha que acusou a TV Globo de ter apoiado o regime militar, o diretor de jornalismo da poderosa emissora, Evandro Carlos de Andrade, deu o troco:
“Aproveito para recomendar que procure saber um pouco da história da Folha, empresa apenas comercial que prosperou extraordinariamente na ditadura, não graças à receptividade do público e à qualidade do que produziu, mas apenas em retribuição ao incondicional apoio dado por este jornal ao regime militar. A senhora por acaso já se interessou por saber a causa de, naquele tempo, serem queimadas as Kombis da Folha?”, retrucou o diretor da TV Globo (20/01/2000). Na fase mais cruel da ditadura, a Folha divulgava a “morte” de “terroristas” em “emboscadas com a polícia”, quando estes ainda estavam na prisão. A falsa notícia servia para acobertar as torturas, como no caso do assassinado de Joaquim Seixas. Como resposta, grupos armados incendiaram três peruas da empresa e o durão Frias passou a dormir no prédio da Folha.
Baluarte do receituário neoliberal
A briga entre a TV Globo e a Folha serve para elucidar que foi exatamente na fase mais dura da ditadura que a Famiglia Frias ergueu o seu império com base nos subsídios e nas benesses do poder. A cronologia apologética já citada registra que, em 1967, “a Folha dá inicio à revolução tecnológica e à modernização do seu parque gráfico. O jornal é pioneiro na impressão offset em cores, utilizada em larga tiragem pela primeira vez no Brasil... Em 1971, o jornal adota o sistema eletrônico de fotocomposição, pioneiro no Brasil”. No mesmo ano, lembra o texto, “o ex-capitão Carlos Lamarca, líder do grupo guerrilheiro MR-8, é morto pelo Exército na Bahia. O deputado Rubens Paiva é seqüestrado por militares e desaparece”.
Protegida pela ditadura, a Folha cresceu e passou a ter projeção nacional. Ainda em 1977, ela atendeu as ordens de Hugo de Abreu, outro general linha dura, que pediu a demissão do escritor Lourenço Diaféria, que escrevera uma crônica sobre um bombeiro que “urinara” na estátua de Duque de Caxias, no centro de São Paulo. No seu livro autobiográfico, “O outro lado do poder”, Hugo de Abreu descreve: “Telefonei para o doutor Otávio Frias e ele disse: ‘Meu general, estou aqui de mão na pala, fazendo continência’”. Apenas quando nota que o regime estava nos estertores é que o jornal passou a pregar a redemocratização, ao mesmo tempo em que se colocava como “pioneiro” do receituário neoliberal de desmonte do Estado.
Na sua badalada pluralidade, a Folha deu espaço para FHC e para o sociólogo tucano Bolívar Lamounier e abriu suas páginas para Plínio Correa de Oliveira, líder da seita católica Tradição, Família e Propriedade (TFP) e para o pefelista Marco Maciel. Num primeiro momento, apoiou o “caçador de marajás” Fernando Collor como única forma de derrotar Lula, mas logo depois engrossou o coro do impeachment. Durante os oito anos de FHC, ela nada falou contra as suspeitas privatizações e pregou a ortodoxia macroeconômica. Com a eleição de Lula, porém, tornou-se um dos principais instrumentos da oposição de direita. Mesmo colunistas com um passado mais crítico, como Clóvis Rossi, passaram a verter ódio contra o presidente.
A pregação do golpe midiático
Com a eclosão da crise política em maio de 2005, a Folha de S.Paulo virou um palanque da mais raivosa oposição. Ela chegou a fazer coro com os hidrófobos do PFL na proposta do impeachment de Lula, numa autêntica pregação do golpe midiático. Um atento comerciante paulista, Eduardo Guimarães, teve a paciência de acompanhar as manchetes deste jornal em setembro de 2006. Elas foram arroladas no seu blog na internet (www.cidadania.com) e impressionam pelo alto grau de manipulação. “As mensagens desfavoráveis para o candidato Lula são a maioria esmagadora... Já os adversários de Lula, sobretudo o principal, Geraldo Alckmin, foram totalmente poupados. Esse é um fato incontestável”.
As conclusões do comerciante foram confirmadas por dois institutos que monitoram sistematicamente a imprensa: o Datamídia, da PUC-RS, e o Observatório Brasileiro da Mídia, filial do Media Watch Global. O primeiro identificou que, entre 13 e 19 de julho, a Folha dedicou 778 centímetros/coluna de texto com tom positivo para Alckmin, enquanto Lula teve, no mesmo período, 562 centímetros/coluna de mensagem positiva. Já o Observatório pesquisou os principais jornais e revistas de julho a agosto, incluindo a Folha, e constatou que o Lula foi retratado de forma negativa em 47,41% das matérias, contra 31,2% em que foi tratado positivamente. No caso de Alckmin, a situação se inverte: 44,56% favoráveis e 31,42% negativas.
Apesar desta descarada manipulação, todas as sondagens eleitorais ainda apontavam a vitória de Lula no primeiro turno para o desespero dos “deformadores de opinião” da mídia. A “operação burrice” de alguns petistas afoitos, que tentaram comprar o dossiê da “máfia das sanguessugas”, apenas realimentou o sonho da direita de forçar o segundo turno. Aproveitando a ocasião, o filho de Frias, o yuppie Otavinho, afirmou em editorial que o dossiêgate comprovaria que “a cúpula petista instalou uma máfia sindical-partidária no aparelho do Estado. A função dessa máfia é garantir condições para que Lula e seu grupo se eternizem no poder... O que caracteriza os integrantes dessa máfia é a lealdade antiga e canina a Lula, o chefão”.
O tiroteio deste jornal na semana que antecedeu as eleições foi devastador. Manchetes sensacionalistas e centenas de matérias, até na seção de esporte, visaram satanizar o presidente e apelaram para o imperativo do segundo turno “pelo bem da democracia”. Pesquisa do Datafolha até foi antecipada, contrariando a Lei 9.504 que disciplina as eleições, para dar a impressão da inevitabilidade do segundo turno.
A distorção da Folha de S.Paulo foi tão brutal que até o seu próprio ombudsman, Marcelo Beraba, teve de registrá-la envergonhado. “O fato de considerar a conspiração para a obtenção do dossiê mais importante do que o dossiê não significa que eu esteja de acordo com o pouco empenho dos jornais na apuração das denúncias contra Serra e Barjas Negri [dois ex-ministros de FHC envolvidos na compra superfaturada de ambulâncias]. Uma cobertura não anula a outra” (FSP, 24/09/06). Na prática, a empresa do falecido Octavio Frias de Oliveira, que no passado cedeu suas caminhonetes para o transporte de presos políticos, hoje prega abertamente um golpe midiático. Esta conduta golpista, seguida pelo grosso da mídia, deveria servir ao menos para acabar com as ilusões sobre o papel imparcial dos meios de comunicação no Brasil.
Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro “As encruzilhadas do sindicalismo” (Editora Anita Garibaldi, 2ª edição).

Blog do Mino Carta

Observação de última hora
Pretendia encerrar esta minha atividade hoje, em gozo de férias necessárias devido ao esforço ciclópico despendido na tentativa de elaborar a lista das provas da imbecilização do mundo (e eu sou deste mundo), e eis que não resisto a uma observação de última hora. Li uma frase do governador José Serra, a respeito de Octavio Frias de Oliveira, e fiquei comovido. Soa mais ou menos assim: sempre tivemos ótimas relações, a despeito das naturais dificuldades entre um publisher e um político. Singelo e bonito. Apraz-me acentuar, apenas, que Frias costumava afirmar seu propósito de só morrer depois de ver Serra eleito para a Presidência da República. Tratou-se, a bem da sacrossanta verdade, das relações entre um político de grandes projetos e um dos seus mais empenhados cabos eleitorais.

Análise - Matéria

Vale a penas pensarmos como o João Domingos apurou a matéria abaixo sobre o Ibama.



Parecer do Ibama foi dirigido contra licença

Até reflexões sobre população carcerária e Tratado de Tordesilhas entraram nas considerações sobre usinas

João Domingos

O parecer técnico do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) sobre a viabilidade ambiental das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio foi direcionado para rejeitar a licença de construção das duas usinas no Rio Madeira, em Rondônia. Nas 221 páginas do relatório concluído em 21 de março, os oito técnicos responsáveis utilizaram por 707 vezes a palavra “não”, quase sempre para desqualificar o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (Rima), as duas peças fundamentais para a concessão da licença prévia das duas obras, feitas pelo consórcio Furnas/Odebrecht. Até reflexões sobre o tamanho da população carcerária e o Tratado de Tordesilhas entraram nas considerações para negar a licença.

Exemplos de artifícios para levar à conclusão de que não era possível conceder a licença existem às centenas - e todos são muito parecidos.

“Não houve o correto dimensionamento da área de campinarana que poderá ser afetada pela elevação do lençol freático; também não foi corretamente avaliado o impacto das perdas de áreas de lazer e turismo, notadamente as praias e cachoeiras, e a alteração do potencial turístico local, nem apresentado um programa ambiental correspondente; não foram apresentadas alternativas tecnológicas e locacionais específicas para questões sedimentológicas”, aponta o relatório. Nesse ritmo, a última oração escrita pelos técnicos no parecer sustentou, de novo, o tão familiar advérbio: “Portanto, recomenda-se a não-emissão da licença prévia.”

A chuva de “nãos” chama a atenção no texto que rejeitou a concessão da licença ambiental para as usinas previstas no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), para as quais estão previstos investimentos de R$ 20 bilhões. As hidrelétricas, se construídas, vão gerar 6,5 mil megawatts de energia, metade de Itaipu. O projeto prevê o aproveitamento do movimento horizontal do rio, diminuindo a necessidade de enormes represas, destinadas a gerar grandes quedas verticais para movimentar as turbinas.

POPULAÇÃO CARCERÁRIA

Existem no parecer outros pontos tão curiosos quanto o freqüente uso do “não”. Um deles diz respeito à população carcerária. O relatório resolveu aprofundar a análise sobre o número de presos de Porto Velho, a capital de Rondônia. Concluiu que é uma população gigantesca. De fato, é.

Difícil é dizer o que isso tem que ver com uma concessão de licença ambiental para usinas que vão ser construídas a mais de 100 quilômetros rio acima e para as quais se examina a viabilidade ambiental.

De acordo com o parecer, Rondônia é um dos Estados mais violentos do Brasil. “A população carcerária passou de um preso para cada 5.169 habitantes, em 1980, para o número extraordinário de um preso para cada 369 habitantes em 2003.” Em seguida, conclui que é grande o problema de segurança no Estado em relação às drogas, principalmente na fronteira com a Bolívia. Mas não só lá, porque o problema se verifica também ao longo da BR-364 (Limeira, em São Paulo, a Cruzeiro do Sul, no Acre, cortando Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Rondônia).

O mesmo parecer fez ainda uma análise das povoações a oeste do Tratado de Tordesilhas, lembrando que o espaço onde hoje está Rondônia pertencera à Espanha. Acontece que o tratado expirou em 1750, exatos 257 anos antes da emissão do relatório do Ibama e 164 anos antes da fundação de Porto Velho. Mesmo os bandeirantes que avançaram pela fronteira oeste, como Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhangüera, jamais chegaram perto do que hoje é Rondônia.

A MONTANTE

Outra manobra protelatória que pode ser verificada no parecer do Ibama diz respeito à sugestão de que se faça, além de um novo Estudo de Impacto Ambiental para as usinas, algo semelhante na Bolívia e no Peru, dois países por onde também passa o Rio Madeira. Especialistas que leram o parecer do Ibama consideraram a sugestão absurda.

Disseram que não há precedente na história de algo assim e lembraram que os dois países vizinhos ficam acima do local onde devem ser construídas as hidrelétricas, o que na linguagem técnica é chamado de “a montante”. Portanto, o que vai ocorrer abaixo não lhes diz respeito. Mas o relatório insiste em que interessa, sim. “Aqueles que vivem da atividade pesqueira serão atingidos economicamente muito além dos limites brasileiros, como é o caso dos bolivianos e peruanos que dependem economicamente da pesca da dourada (brashyplatystoma rosseausii), espécie seriamente ameaçada com a implantação do empreendimento.”

MANOBRA

Em outra parte, já no fim do parecer, concluíram os técnicos do Ibama que “considerando a real área de abrangência dos projetos e o envolvimento do Peru e da Bolívia, a magnitude desses novos estudos remete à reelaboração do Estudo de Impacto Ambiental e instrumento apropriado a ser definido conjuntamente com esses países impactados”. Essa, na opinião de técnicos do Ministério de Minas e Energia, é a mais flagrante manobra protelatória que poderia haver no relatório do Ibama.

A respeito dessa parte do parecer, respondeu o então diretor de Licenciamento Ambiental do Ibama, Luiz Felippe Kunz Júnior: “Encaminharei consulta à Procuradoria Federal Especializada sobre a possibilidade de realização de estudos em outros países, ou de exigir análise de dados secundários da bibliografia científica já existente sobre a situação da bacia nos países vizinhos, caso necessário.” Kunz foi demitido.


Instituto vetou explicações de técnicos sobre texto

O Estado procurou os técnicos do Ibama que deram o parecer. Mas a direção do instituto informou que eles não poderiam se manifestar, dado que o relatório, uma vez feito, é de responsabilidade da autarquia. Sabe-se que manobras protelatórias como as que foram usadas muitas vezes têm outro objetivo. Para fugir de ações de improbidade administrativa por parte do Ministério Público, caso este considere que houve transgressão à lei, os técnicos evitam tomar decisões polêmicas.

Uma vez processados, eles não contam com o serviço jurídico do órgão para o qual trabalham. São obrigados a contratar advogados e arcar com as despesas. Uma saída apontada pelo presidente da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Jerson Kelman, seria tirar do técnico a responsabilidade jurídica pelo parecer, transferindo-a para o órgão para o qual trabalha. A Câmara dos Deputados tende a aceitar a sugestão.

Tanto cuidado por parte dos técnicos acabou por gerar um parecer contraditório quanto à viabilidade ambiental das usinas do Madeira. Nas conclusões, eles sugeriram que fosse reelaborado o Estudo de Impacto Ambiental. Mas, em seguida, por considerar impossível atestar a viabilidade ambiental dos empreendimentos de Jirau e Santo Antônio, determinaram um novo estudo.


Bagres que fizeram alegria hoje tiram Lula do sério

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva gaba-se de ser um ótimo pescador de jaú. Disse, durante café da manhã com jornalistas, em 22 de dezembro, que já pegou um de mais de 50 quilos. Em tupi-guarani, jaú quer dizer 'boca grande', 'grande bagre comedor'. Se o bagre jaú faz a felicidade do pescador Lula, dois outros tipos de bagres, a dourada e a piramutaba, trazem a infelicidade e tiram o sono do presidente. E ameaçam a licença ambiental para a usinas do Rio Madeira.

O parecer dos técnicos do Ibama que rejeitou a licença ambiental prévia para as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio tem 10 páginas dedicadas só aos 'grandes bagres' dourada (brachyplatystoma rousseauxii) e piramutaba (brachyplatystoma vailanti) e a outros menores. Diz o relatório que as duas espécies maiores empreendem migrações microrregionais, estando entre as maiores conhecidas para peixes de água doce no mundo.

Ainda conforme o parecer, as duas espécies necessitam utilizar diferentes áreas da Bacia Amazônica para completar seu ciclo de vida. As formas juvenis se desenvolvem no estuário do Rio Amazonas, onde ficam de dois a três anos alimentando-se até atingir cerca de 40 centímetros de comprimento. A partir daí, iniciam sua migração de mais de 3 mil quilômetros rumo às cabeceiras dos rios que nascem na Cordilheira dos Andes, já na Bolívia e no Peru, onde desovam. As usinas atrapalhariam a passagem deles para a reprodução, rio acima. Por isso, é preciso encontrar um jeito de lhes dar passagem.

Além das informações referentes à dourada e à piramutaba, o parecer cita ainda outras espécies de bagres que vivem na região, todos com importância comercial, entre eles o babão, filhote, surubim, caparari, pirarara, piraíba, barba-chata, barbado e, claro, o jaú do presidente Lula.


Barragens desalojariam menos de 3 mil pessoas

De acordo com o parecer dos técnicos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), 2.849 pessoas serão desalojadas pelas barragens das duas hidrelétricas do Rio Madeira, caso elas venham a ser construídas. É um número pequeno, se comparado ao de qualquer outro empreendimento do mesmo porte. Só no Açude do Castanhão, no Ceará, por exemplo, foram 4 mil as famílias retiradas do local, o que significa pelos menos 20 mil pessoas afetadas pela obra.

Tendo em vista que boa parte da população que será atingida pelas duas barragens do Rio Madeira para a construção das usinas é constituída de garimpeiros, é possível que se trate de uma população com fluxos migratórios. Mesmo tendo concluído que esses garimpeiros vivem em desacordo com a legislação ambiental, ao se referir a eles os técnicos tomaram uma atitude protelatória.

'De qualquer forma, é necessária a realização de estudos mais detalhados, porque, mesmo estando muitos desses trabalhadores em desacordo com as leis ambientais, o fato é que desenvolvem uma atividade produtiva, sustentam famílias e precisam estar contabilizados e diagnosticados para adequado tratamento', diz o parecer do Ibama.

Estudos mais detalhados exigem mais tempo.

GARIMPOS

Os garimpos de ouro, cassiterita e topázio são os mais importantes na área de formação da hidrelétrica de Jirau, sendo pouco expressivos na de Santo Antônio, a não ser por uma porcentagem bem pequena de pessoas residentes em Jaci-Paraná, de acordo com o parecer dos técnicos do Ibama. Na área de Santo Antônio, há registro expressivo de pessoas ligadas à extração de açaí, pupunha, castanha, andiroba, copaíba e cupuaçu.

A área de extração de ouro feita pela Mineração São Lourenço fica distante das duas hidrelétricas. As informações sobre topázio foram inconclusas. Na época das cheias do Madeira, quando o nível do rio atinge mais ou menos 18 metros de profundidade, a atividade garimpeira é realizada quase unicamente pelas dragas e balsas, poucas com auxílio de mergulhadores, além de raros garimpos manuais que utilizam equipamento rudimentar.

A média de extração de ouro é de 1,75 quilo/mês por draga. Cada uma das dragas gera, em média, cinco empregos diretos, com 20% da produção rateada entre os empregados como remuneração, propiciando renda mensal de cerca de R$ 2,65 mil por mês para cada operador (cotação do ouro feita, à época, a R$ 37 o grama). O custo médio de montagem de uma draga é de R$ 250 mil.


Ao saber do veto, presidente encerrou reunião para poder 'esfriar a cabeça'

Foi grande a decepção - há quem a descreva como uma raiva contida - do presidente Lula quando soube, por intermédio do então presidente do Ibama, Marcus Barros, que não haveria a licença prévia para as usinas do Madeira. A reunião foi realizada em 23 de março, dois dias depois da emissão do parecer técnico e sete dias antes do despacho do então diretor de Licenciamento Ambiental, Luiz Felippe Kunz, que concordou com a impossibilidade da emissão de licença prévia naquele momento. Kunz foi demitido.

Dessa reunião participaram os ministros Marina Silva (Meio Ambiente), Dilma Rousseff (Casa Civil) e Silas Rondeau (Minas e Energia), além de Barros, Kunz e o então secretário-executivo do Meio Ambiente, Cláudio Langone, também já demitido. De acordo com um dos participantes, a reunião foi muito tensa.

Quando Lula perguntou como estava o licenciamento das hidrelétricas, Barros apanhou o pacote de 221 páginas elaborado por oito técnicos do instituto e entrou diretamente no parecer final, sem amenizar o impacto. 'A equipe técnica concluiu não ser possível atestar a viabilidade ambiental dos aproveitamentos hidrelétricos Santo Antônio e Jirau, sendo imperiosa a realização de novo Estudo de Impacto Ambiental (EIA), mais abrangente, tanto em território nacional como em territórios transfronteiriços, incluindo a realização de novas audiências públicas. Portanto, recomenda-se a não-emissão da licença prévia.'

Quando Barros terminou, Dilma mordia o lábio superior, com força; Rondeau tinha se levantado da cadeira; Langone estava de cabeça baixa; Marina mantinha-se muda. Lula esperou uns momentos. Recompôs-se e disse: 'Olha, vamos esfriar a cabeça e fazer uma nova reunião para ver o que fazer.

'Um novo encontro foi marcado para dali a três dias, em 26 de março. Lula estava mais tranqüilo. Foi marcado mais um encontro para 9 de abril, mas Lula fugiu. Foi a última reunião.

Jornalista em pauta: Lourival Sant'Anna

Lourival Sant'Anna:
Começou a trabalhar no jornal O Estado de S. Paulo em 1990, entrando como redator da Editoria Internacional. Antes disso, trabalhou durante um ano como repórter na Agência Folha.
Em 1993, foi para Londres, trabalhar no Serviço Brasileiro da BBC. Ficou lá durante dois anos, atuando também como correspondente do Estado.

Voltou a São Paulo em 1995, assumindo o cargo de editorialista do Estado.

No início de 1998, tornou-se repórter especial.

Ficou nesse cargo até o início de 2000, quando assumiu as funções de editor-chefe do jornal.
Em outubro do mesmo ano, foi para a CNN, onde ficou apenas três meses.

Voltou para o Estado em janeiro de 2001, reassumindo a função de repórter especial, na qual continua até hoje.

Fonte: www.lourivalsantanna.com (não deixem de visitar)

sexta-feira, 18 de maio de 2007

A Melhor Profissão do Mundo - GG Marquez

"Há uns cinqüenta anos não estavam na moda escolas de jornalismo. Aprendia-se nas redações, nas oficinas, no botequim do outro lado da rua, nas noitadas de sexta-feira. O jornal todo era uma fábrica que formava e informava sem equívocos e gerava opinião num ambiente de participação no qual a moral era conservada em seu lugar."

"Não haviam sido instituídas as reuniões de pauta, mas às cinco da tarde, sem convocação oficial, todo mundo fazia uma pausa para descansar das tensões do dia e confluía num lugar qualquer da redação para tomar café. Era uma tertúlia aberta em que se discutiam a quente os temas de cada seção e se davam os toques finais na edição do dia seguinte. Os que não aprendiam naquelas cátedras ambulantes e apaixonadas de vinte e quatro horas diárias, ou os que se aborreciam de tanto falar da mesma coisa, era porque queriam ou acreditavam ser jornalistas, mas na realidade não o eram."

"O jornal cabia então em três grandes seções: notícias, crônicas e reportagens, e notas editoriais. A seção mais delicada e de grande prestígio era a editorial. O cargo mais desvalido era o de repórter, que tinha ao mesmo tempo a conotação de aprendiz e de ajudante de pedreiro. O tempo e a profissão mesma demonstraram que o sistema nervoso do jornalismo circula na realidade em sentido contrário. Dou fé: aos 19 anos, sendo o pior dos estudantes de direito, comecei minha carreira como redator de notas editoriais e fui subindo pouco a pouco e com muito trabalho pelos degraus das diferentes seções, até o nível máximo de repórter raso.

A prática da profissão, ela própria, impunha a necessidade de se formar uma base cultural, e o ambiente de trabalho se encarregava de incentivar essa formação. A leitura era um vício profissional. Os autodidatas costumam ser ávidos e rápidos, e os daquele tempo o fomos de sobra para seguir abrindo caminho na vida para a melhor profissão do mundo - como nós a chamávamos. Alberto Lleras Camargo, que foi sempre jornalista e duas vezes presidente da Colômbia, não tinha sequer o curso secundário.

A criação posterior de escolas de jornalismo foi uma reação escolástica contra o fato consumado de que o ofício carecia de respaldo acadêmico. Agora as escolas existem não apenas para a imprensa escrita como para todos os meios inventados e por inventar. Mas em sua expansão varreram até o nome humilde que o ofício teve desde suas origens no século XV, e que agora não é mais jornalismo, mas Ciências da Comunicação ou Comunicação Social.

O resultado não é, em geral, alentador. Os jovens que saem desiludidos das escolas, com a vida pela frente, parecem desvinculados da realidade e de seus problemas vitais, e um afã de protagonismo prima sobre a vocação e as aptidões naturais. E em especial sobre as duas condições mais importantes: a criatividade e a prática.

Em sua maioria, os formados chegam com deficiências flagrantes, têm graves problemas de gramática e ortografia, e dificuldades para uma compreensão reflexiva dos textos. Alguns se gabam de poder ler de trás para frente um documento secreto no gabinete de um ministro, de gravar diálogos fortuitos sem prevenir o interlocutor, ou de usar como notícia uma conversa que de antemão se combinara confidencial.

O mais grave é que tais atentados contra a ética obedecem a uma noção intrépida da profissão, assumida conscientemente e orgulhosamente fundada na sacralização do furo a qualquer preço e acima de tudo. Seus autores não se comovem com a premissa de que a melhor notícia nem sempre é a que se dá primeiro, mas muitas vezes a que se dá melhor. Alguns, conscientes de suas deficiências, sentem-se fraudados pela faculdade onde estudaram e não lhes treme a voz quando culpam seus professores por não lhes terem inculcado as virtudes que agora lhes são requeridas, especialmente a curiosidade pela vida.

É certo que tais críticas valem para a educação geral, pervertida pela massificação de escolas que seguem a linha viciada do informativo ao invés do formativo. Mas no caso específico do jornalismo parece que, além disso, a profissão não conseguiu evoluir com a mesma velocidade que seus instrumentos e os jornalistas se extraviaram no labirinto de uma tecnologia disparada sem controle em direção ao futuro.

Quer dizer: as empresas empenharam-se a fundo na concorrência feroz da modernização material e deixaram para depois a formação de sua infantaria e os mecanismos de participação que no passado fortaleciam o espírito profissional. As redações são laboratórios assépticos para navegantes solitários, onde parece mais fácil comunicar-se com os fenômenos siderais do que com o coração dos leitores. A desumanização é galopante.

Não é fácil aceitar que o esplendor tecnológico e a vertigem das comunicações, que tanto desejávamos em nossos tempos, tenham servido para antecipar e agravar a agonia cotidiana do horário de fechamento.

Os principiantes queixam-se de que os editores lhes concedem três horas para uma tarefa que na hora da verdade é impossível em menos de seis, que lhes encomendam material para duas colunas e na hora da verdade lhes concedem apenas meia coluna, e no pânico do fechamento ninguém tem tempo nem ânimo para lhes explicar por que, e menos ainda para lhes dizer uma palavra de consolo.

"Nem sequer nos repreendem", diz um repórter novato ansioso por ter comunicação direta com seus chefes. Nada: o editor, que antes era um paizão sábio e compassivo, mal tem forças e tempo para sobreviver ele mesmo ao cativeiro da tecnologia.

A pressa e a restrição de espaço, creio, minimizaram a reportagem, que sempre tivemos na conta de gênero mais brilhante, mas que é também o que requer mais tempo, mais investigação, mais reflexão e um domínio certeiro da arte de escrever. É, na realidade, a reconstituição minuciosa e verídica do fato. Quer dizer: a notícia completa, tal como sucedeu na realidade, para que o leitor a conheça como se tivesse estado no local dos acontecimentos."

"O gravador é culpado pela glorificação viciosa da entrevista. O rádio e a televisão, por sua própria natureza, converteram-na em gênero supremo, mas também a imprensa escrita parece compartilhar a idéia equivocada de que a voz da verdade não é tanto a do jornalista que viu como a do entrevistado que declarou. Para muitos redatores de jornais, a transcrição é a prova de fogo: confundem o som das palavras, tropeçam na semântica, naufragam na ortografia e morrem de enfarte com a sintaxe.

Talvez a solução seja voltar ao velho bloco de anotações, para que o jornalista vá editando com sua inteligência à medida que escuta, e restitua o gravador a sua categoria verdadeira, que é a de testemunho inquestionável. De todo modo, é um consolo supor que muitas das transgressões da ética, e outras tantas que aviltam e envergonham o jornalismo de hoje, nem sempre se devem à imoralidade, mas igualmente à falta de domínio do ofício.

Talvez a desgraça das faculdades de Comunicação Social seja ensinar muitas coisas úteis para a profissão, porém muito pouco da profissão propriamente dita. Claro que devem persistir em seus programas humanísticos, embora menos ambiciosos e peremptórios, para ajudar a constituir a base cultural que os alunos não trazem do curso secundário.

Entretanto, toda a formação deve se sustentar em três vigas mestras: a prioridade das aptidões e das vocações, a certeza de que a investigação não é uma especialidade dentro da profissão, mas que todo jornalismo deve ser investigativo por definição, e a consciência de que a ética não é uma condição ocasional, e sim que deve acompanhar sempre o jornalismo, como o zumbido acompanha o besouro.

O objetivo final deveria ser o retorno ao sistema primário de ensino em oficinas práticas formadas por pequenos grupos, com um aproveitamento crítico das experiências históricas, e em seu marco original de serviço público. Quer dizer: resgatar para a aprendizagem o espírito de tertúlia das cinco da tarde.

Um grupo de jornalistas independentes estamos tratando de fazê-lo, em Cartagena de Indias, para toda a América Latina, com um sistema de oficinas experimentais e itinerantes que leva o nome nada modesto de Fundação do Novo Jornalismo Ibero-Americano. É uma experiência piloto com jornalistas novos para trabalhar em alguma especialidade - reportagem, edição, entrevistas de rádio e televisão e tantas outras - sob a direção de um veterano da profissão."

"A mídia faria bem em apoiar essa operação de resgate. Seja em suas redações, seja com cenários construídos intencionalmente, como os simuladores aéreos que reproduzem todos os incidentes de vôo, para que os estudantes aprendam a lidar com desastres antes que os encontrem de verdade atravessados em seu caminho. Porque o jornalismo é uma paixão insaciável que só se pode digerir e humanizar mediante a confrontação descarnada com a realidade.

Quem não sofreu essa servidão que se alimenta dos imprevistos da vida, não pode imaginá-la. Quem não viveu a palpitação sobrenatural da notícia, o orgasmo do furo, a demolição moral do fracasso, não pode sequer conceber o que são. Ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir numa profissão tão incompreensível e voraz, cuja obra termina depois de cada notícia, como se fora para sempre, mas que não concede um instante de paz enquanto não torna a começar com mais ardor do que nunca no minuto seguinte."